quarta-feira, 30 de março de 2011

LinguagemInclusive

Para refletir como a opressão se manifesta também na linguagem.

http://radius.tachanka.org/confabulando/index.php?n=Main.LinguagemInclusive

o que é esse tanto de x, @, as/os, 'is' espalhad@s pelos textos da confabulando?
há quem chame de 'linguagem inclusiva de gênero'. eu gosto de pensar que é 'linguagem abrangente'.

mas por quê?

a inclusão de linguagem não-exclusiva (em palavras como todxs, amig@s, negrxs ou nós mesm@s) deve-se a uma tentativa de se incluir em discurso o que não queremos excluir na prática. isso é muito importante para desmascarar a crença no masculino universal se sabemos que ele reforça uma sociedade que, historicamente, retira das mulheres a condição de sujeit@. mas falar sobre 'inclusão' soa muito paternalista, parece que reafirmamos um sistema de coisas hegemônicas / mais-importantes / superiores-hierarquicamente-numa-hierarquia-que-cria-pra-ser-superior, sua hegemonia, mas também sua permissão em incluir.

sugestão para um próximo cartaz pra colar nas paradas de ônibus: "se dizem todos, todas estamos de fora (da história)!

questões frequentes, respostas urgentes!

um pequeno manual de respostas incisivas pra perguntas cretinas

1. de que adianta, afinal, usar linguagem inclusiva? (a partir de uma suposição de que a linguagem não altera o mundo)

pois bem, existem pelo menos duas linhas argumentativas sobre o impacto da linguagem inclusiva no mundo (sexista, machista, misógino):

A primeira pode ser assim: realmente uma mudança "só" na maneira como anunciamos o mundo (em palavras, através de uma gramática) não vai necessariamente mudar o mundo. Mas se continuamos anunciando o mundo de uma maneira sexista (que exclui, por exemplo, mulheres de uma existência discursiva pelo uso do masculino genérico) isso reforça a vigência do mundo dessa mesma maneira. Não aceitar o golpe que tenta igualar masculino a genérico abre possibilidades de que sejam reconhecidas as mulheres, suas existências como agentes históricas. Em outras palavras: mesmo que não seja suficiente apenas incluir na fala/texto, excluir é suficiente para reforçar o distanciamento das mulheres desse papel de agência. Mas mesmo a saída de anunciar "as mulheres e os homens", "as negras e negros", "as e os estudantes cotistas", é uma saída? Que tipo de vigência ela reforça? A do par de gêneros que tentam se completar de maneira heterossexualizada, forçada, inevitável - naturalizada. Quantos gêneros existem entre o feminino e o masculino eleitos como pólos? Quantos existem além deles? E como podemos representar isso discursivamente? Mas também, ao mesmo tempo, pensando nas ciladas da representação.

O uso de "x", de expressões menos marcadas (como "as pessoas que dão aula" no lugar de "as professoras e os professores") ou de outros caracteres ("@") pode puxar o tapete da segurança da representatividade, quando aponta que talvez não consigamos, sempre e todas as vezes, nem representar, nem sequer nos referir, a todas as pessoas com quem podemos/queremos nos comunicar, com quem estamos efetivamente nos comunicando. Quer dizer, a linguagem não é infalível nem é uma estrutura totalizante que consegue encerrar tudo. Não consegue encerrar nem nossos pensamentos, muito menos a existência efetiva, secreta ou declarada, de quem não ocupa uma categoria, identidade ou situação fixa, estática. A fixação da linguagem em normas imutáveis é, portanto, uma ficção. Por aí podemos tentar pisar o chão movediço da existência não fixante (conteúdo) que se enuncia na fluidez lingüística (forma). (E quem sabe isso não consegue até borrar essas duas separações, também engessantes?)

Isso nos conecta a um segundo argumento possível àquela conformação ("usar linguagem abrangente não adianta"), talvez mais drástico: a maneira como pronunciamos o mundo é o próprio mundo... Quero dizer que a separação entre linguagem e mundo é, em certo sentido, uma construção sem sentido se assumimos que a linguagem, por razões óbvias, não paira no nada (ela é produzida dentro das cabeças e pronunciada através das bocas, pelo menos). E é nesse sentido, no de produção de linguagem como reprodução de mundos ou criação de novos, que a linguagem inclusiva faz parte de uma luta anti-sexista pelo fim da misoginia e violência de gênero. Apagar as mulheres do discurso é a violência de apagar-nos da história, não só da possibilidade que temos de construí-la, mas do fato de que já estamos, como sempre estivemos, construindo história. Mesmo que essa nossa construção tenha sido domesticada.

A linguagem não é abstrata, quando falamos algo uma imagem vem a cabeça de quem escuta. Quando falamos "os manifestantes foram às ruas", "os médicos fazem o possível" a imagem que vem na cabeça é de homens manifestando e de apenas homens médicos. Isso é mais grave quando não usamos linguagem abrangente para falar de posições que são tidas como masculinas, mas que existem muitas mulheres nelas, posições de prestígio hegemônico, como médicxs. Se alguém falar só no masculino esse imaginário se mantém fixo, de que só homens estão naquela posição. Mas quando mudamos isso na linguagem, o imaginário também muda, ou pelo menos se confunde. Médicas e médicos, médiquis, as manifestantes foram às ruas... a imagem muda.

A demanda por linguagem mais abrangente não se limita à possibilidade de que haja, num auditório cheio de homens brancos engravatados, uma senhora negra servindo cafezinho lá no canto de trás que vá ficar feliz porque alguém falou "bom dia, senhoras e senhores". Ela é, em si, uma tentativa de questionar os mecanismos que estão fazendo funcionar essa estrutura que coloca homens brancos de um lado (os servidos) e mulheres negras de outro (servindo). [falar melhor sobre essas conexões]

2. Sobre a poluição textual: "É complicado usar linguagem abrangente porque ela polui o texto, além de só servir pra textos escritos, mas não pra falar." (argumento de que a linguagem inclusive causa ruídos na linguagem)

O argumento de não usar linguagem inclusiva porque ela dificulta a leitura, que deixa o texto feio, se parece muito com a idéia de construirmos um lixão longe dos centros urbanos para não lembrarmos das merdas que a sociedade humana produz. Quer dizer, é criar uma aparência de limpeza (textual) com base em um sistema de dominação (sexista) e colocar a emergência de uma contestação séria embaixo do tapete com um argumento supostamente estético e formal de não querer poluir o texto. Essa busca pela pureza no texto artificialmente esconde as relações podres que o texto carrega e os conflitos existentes por causa da permanência dessas relações. Ela também denuncia, de maneira bem óbvia, um ideal de pureza fascistóide, uma cultura da assepsia total, da linearidade de pensamento... Enfim, um ideal racionalista bem tosco que tenta exercer controle total de formas de existência outras através do apagamento das maneiras dissonantes, desviantes, ruidosas de pensamento, expressão, resistência.

É importante que leiamos essa idéia do "texto limpo" como política e conservadora, e que lembremos que a língua que falamos é uma herança da colonização... Que tipo de mudança pode ser proposta sem questionar essa grámatica, a mais antiga que conhecemos, emblema da dominação branca e machista? A "norma culta do português" é um projeto político, que foi política de Estado pra se constituir, responsável pelo derramamento de sangue de línguas incontáveis que não vamos mais ouvir. Ela não é aleatória, inocente nem ingênua, mas uma bandeira de determinados modos de pensar, de organização política, de visão de mundo única e homogeneizadora que se impuseram pela força a outros modos.

A idéia que fazemos de militância está muito próxima à idéia de causar ruídos nos sistemas, expor suas falhas constitutivas, jogar o lixão na praça dos três poderes... Se temos maneiras de fazer isso também quando falamos/escrevemos, o que aproxima conteúdo e forma, discurso e prática, vamos fazê-lo. Penso que é difícil construir um mundo sonhado apenas pensando ele, sem sonhá-lo também. É complicado usar linguagem inclusiva como é complicado pensar em formas de organização horizontais, não-hierárquicas, sem lideranças, que demandem nosso comprometimento não só na hora de fazer um ato público, mas também, e talvez principalmente, na hora de escolher o que vamos comer, o que vamos fazer com nosso lixo, que tipo de relações vamos construir com as pessoas com quem vivemos.

E existem várias formas de falar com linguagem abrangente. Posso usar todas e todos, as pessoas daquela noite, todis (linguagem mussum), ou mesmo alternar, numa mesma fala posso dizer as professoras, em seguida os professores, se vou repetir essa expressão, ou ainda as professores... e até onde a criatividade ir. Ao fazer isso estamos mexendo com posições bem marcadas.

3. "É difícil usar linguagem inclusiva o tempo todo, às vezes uso no começo do texto, mas depois esqueço." Contra a vida no modo automático, por uma vida mais autêntica, por maneiras menos óbvias de se viver a vida. O que pode ter, sim, a ver com linguagem.

Talvez a gente tenha que se acostumar, mas sem muito apego, à idéia de que pode ser necessário repensar a prática o tempo todo, conforme ela é anunciada (e por mais que pareça paradoxal essa proposta de que nos acostumemos com o desconforto). Causar estranhamento é importante pra marcar o desmarcado, permitir que outras experiências se enxerguem no texto. Essa experiência do estranhamento com um texto, nós mulheres temos vivido há um tempão. Ouvir um poema sem se reconhecer nele. Ouvir uma música em que a personagem é sempre um "o cara". Cantar "amor, eu quero o teu carinho, porque ai, me sinto tão sozinho". Isso vai além da rima. Temos tido que conviver com o estranhamento de viver num mundo dividido por gêneros asfixiantes, alguns que merecem ser mais falados que outros. Então não é de nos espantar que um macho branco reclame do estranhamento causado num texto com linguagem inclusiva. Privilégios são altamente viciantes. E a representatividade onipresente é um privilégio enorme. Às vezes é mais difícil abrir mão de privilégios que usar linguagem inclusiva. Porque ela mesma pode entrar no modo automático. Então não é difícil ver ativistas/militantes que usem sempre, em todas as falas, em todos os textos, arrobas, as/os, mas que não colocam suas práticas sexistas, racistas, privilegiadas em questionamento. Quero dizer que linguagem inclusiva pode, além de não adiantar a mudar minimamente algum pedaço do mundo (mesmo que esse pedaço seja embaixo do nosso céu da boca), ela pode mascarar o cinismo.

Uma das expressões mais arraigadas é o claro. Pra mim é uma das mais difíceis de parar de usar, mesmo sendo tão claramente racista. "lógico", "óbvio", "nítido", o que mais podemos usar no lugar? Não é só racista porque coloca em pólos opostos uma idéia de certeza, afirmação ligada à luz vs. uma idéia de dúvida, negação ligada à escuridão, também por dizer muito sobre esclarecimento, o iluminismo mesmo. Que significou, na marcação da história, aquela que gostam de escrever com h maiúscula, a expansão do racismo neo-colonialista.

Essa discussão lembra outra, relativa a "disseminação". Etimologicamente, vem do latim: dissemìno,ás,ávi,átum,áre 'id.'; ver semin(i)-; f.hist. 1567 desemear, 1651 disseminar. Significa espalhar as sementes, noção que compartilha sentidos com uma de espalhar sêmen. Ela é bastante ilustrativa de como determinadas expressões, formas lingüísticas são fundamentadas em experiências facilmente associadas ao dito masculino. Talvez o uso de "polinizar" esteja mais isento de significados andro/falocêntricos do que "disseminar", portador de uma carga falogocêntrica explícita.

Texto repassado pelo Movimento de Casas de Estudantes
postado por danilo
coereh cultural

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